quarta-feira, março 16, 2016

Lula e a Geografia


Uma noite de 2011, em Paris, depois de um jantar na embaixada brasileira, fiquei à conversa num canto com Lula da Silva, que tinha ido a França receber um doutoramento "honoris causa". O embaixador tinha convidado um grupo pequeno de amigos de Lula, dos quais eu fazia parte. Com gosto, não me custa dizer.

Lula estava muito bem disposto, durante o jantar disse algumas coisas simpáticas sobre a presidência de Dilma Rousseff, então ainda no seu primeiro mamdato, mas senti que o "bichinho" da política ativa não lhe desaparecera por completo. Embora as pessoas à sua volta apenas pertencessem ao Instituto Lula, devo dizer, com sinceridade, que fiquei com a impressão, até por conversas com algumas delas, que o regresso ao poder fazia evidente parte da agenda coletiva, ainda que apenas implícita, daquele grupo. Não sendo plausível que a reeleição de Dilma estivesse em causa, a aposta nas presidenciais de 2018 era assim o cenário mais provável. (Lula iria ainda passar por graves problemas de saúde, mas, nos últimos tempos, parecia "back into business").

Falámos a sós, por alguns minutos. Contei-lhe então uma conversa que havia tido um dia num almoço na poderosa FIESP (Federação das Indústrias do Estado de S. Paulo), com uma das mais importantes figuras da finança privada do país. Aproximava-se o fim do termo do segundo mandato de Lula. A economia ia muito bem, o Brasil parecia imparável e, por alguns tempos, a ideia de poder haver ambiente político para mudar a Constituição e abrir a porta a um terceiro mandato do presidente começara a correr. O meu vizinho de mesa, sem me pedir confidência, disse-me:

- Se se fosse feita aqui na FIESP uma votação secreta para Lula poder ter um terceiro mandato, posso assegurar-lhe que essa ideia era aprovada por larga maioria. 

Lula, com uma gargalhada, reagiu:

- Não sei se eles votaram antes do Fernando Henrique ter mudado a Constituição, para ter direito a um segundo mandato... Mas eu nunca quis um terceiro mandato. Queria cumprir a Constituição tal como a recebi.

Pode ser que tenha sido assim, também pode ser que Lula tivesse avaliado que, no Congresso, as coisas não estariam suficientemente maduras para tal. De todo o modo, não o fez e isso foi positivo para a estabilidade institucional do país. Devo dizer que, à época, fiquei com alguma admiração por Lula não ter estimulado os que pretendiam fazer a revisão institucional. E disse-lho:

- Sabe, Presidente, o senhor devia ter um prémio de Geografia.

- Da Geografia, embaixador?

- Sim, Presidente, porque o senhor conseguiu "tirar" o Brasil da América Latina. Na América Latina, as vantagens da continuidade política costumam ser mais importantes do que a letra das constituições. Mas o senhor, não, preferiu respeitar a constituição existente e, pode crer, isso foi muito apreciado em muitos países.

Lula ficou visivelmente satisfeito com o que ouviu. Lá nos despedimos nessa noite, com um imenso abraço, tratando-me por "querido embaixador", como era do seu jeito. Não voltei a falar com ele desde então.

Ontem, Lula, ao tentar integrar o governo Dilma para se furtar à justiça, ajudou a que o país "regressasse" à região. E isso não é uma boa notícia. Tenho muita pena, confesso.

terça-feira, março 15, 2016

Fortes nos mares

Acabam de ser revelados, pelas autoridades do Oman, pormenores sobre os restos de uma nau de Vasco da Gama. É uma bela notícia que, por um momento, deveria estimular o nosso orgulho naquela aventura ímpar que foram as viagens de Quinhentos.

Recupero aqui um texto que publiquei em dezembro de 2012, escrito aquando de uma viagem ao Oman.

Ele aqui fica.

- Os portugueses chegaram aqui e construíram este forte, depois de terem circundado toda a África. Não é fantástico!

A expressão, de um responsável governamental do Oman, frente à fortaleza de Al-Jalali, o antigo forte de S. João, em Mascate, foi dita perante umas dezenas de pessoas, que logo me olharam, como se acaso os meus antepassados, de lá de Trás-os-Montes ou do Minho, pudessem reivindicar parte dessa glória. E eu, por tabela, como herdeiro natural das viagens que outros fizeram por nós.

- Pois na minha terra, no Benin, também construíram uma bela fortaleza, em Ouidah, disse uma voz, atrás de mim. Sorri silencioso, a lembrar-me do gesto estúpido do funcionário português que, em 1961, na iminência da sua expulsão de S. João Batista de Ajudá, deitou fogo a tudo, inclusivamente ao carro oficial, cuja carcaça hoje faz parte do museu no local.

A tanzaniana logo comentou: "Também construíram bastantes meu país", para logo o iraniano lançar: "há belos vestígios de Portugal na nossa costa", lembrando Ormuz.

Olhei em volta. O meu amigo do Qatar, que me fala sempre de ter nascido junto a um forte português, estava longe, ninguém do Bahrein andava por ali para lembrar o que também ficou por lá, a minha colega queniana não veio na viagem para lembrar Mombaça. Também não havia nenhum marroquino para citar a imponente Mazagão ou Safi, nem ninguém da Malásia para recordar Malaca, ou do Gana para recordar São Jorge da Mina. E, muito menos, algum indiano para citar o belo forte de Diu e o muito que aí ficou. Dos "Palop" não estava ninguém no grupo para inventariar a arquitetura militar portuguesa remanescente (do Cachéu a Luanda, da ilha de Moçambique ao forte de São Sebastião, em S. Tomé). 

Naquele instante, tive pena de não ter, à minha volta, mais vozes internacionais para ajudar ao coro de glória histórica. Até que uma brasileira, casada com um europeu, adiantou: "E então no Brasil!? Conhecem as fortalezas portuguesas no Brasil? São fabulosas!". Mas nem ela se podia gabar de, como eu, de ter visitado a grande maioria delas - a começar por essa maravilha de dificílimo acesso que é o forte Principe da Beira, bem junto à fronteira com a Bolívia.

Isto passou-se ontem, numa viagem da UNESCO ao Golfo, a que me associei, no gozo das minhas últimas férias como embaixador.

O tempo das fortalezas militares já lá vai. Mas Portugal deixou, por aí, um prestigiante mar desses monumentos, marcos de um tempo histórico em que dava algumas cartas. E alguns tiros, porque o poder também se faz disso. E hoje, graças a essa herança, se há ainda coisa em que, pelo mundo, somos fortes é em fortes...

Portugal na Grande Guerra


Hoje à tarde, participarei na RTP num debate sobre Portugal na Grande Guerra, abordando a dimensão diplomática da nossa intervenção.

Lula no Governo?


A possibilidade de Lula da Silva passar a integrar o governo brasileiro, que nas últimas horas tem vindo a ser especulada, não poderá deixar de ser considerado um momento triste para a democracia brasileira. 

A acontecer, a colocação do antigo presidente num lugar do executivo brasileiro, apenas para o proteger de uma eventual prisão, dessa forma garantindo que o seu caso judicial apenas possa ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, constituiria um artifício muito pouco prestigiante, que, além do mais, denotaria fraqueza e insegurança. Que autoridade teria o "ministro Lula da Silva", enquanto a Justiça lhe rondasse a porta?

É verdade que o discurso do Ministério Público brasileiro surge, nos últimos dias, claramente politizado e enviezado politicamente contra Lula. Além disso, o modo desnecessariamente agressivo como o ex-presidente foi intimado a prestar declarações constituiu um manifesto exagero, aliás reconhecido como tal por figuras da oposição. Nota-se uma evidente quebra de serenidade na ação judicial, que, de forma algo gratuita, acaba por retirar alguma autoridade ao processo que conduz. Deslumbrada pela "rua" anti-PT, alguma Justiça brasileira poderá estar a cometer alguns desnecessários lapsos de percurso. Só por equívoco se pode pensar que as instituições podem furtar-se a seguir a sua fria liturgia, com plena preservação de direitos dos acusados, apenas para acompanhar o sentimento do momento da "rua". Isso tem um nome e esse nome não é democracia.

Mas nada disso, repito, poderá justificar a "fuga" de Lula para o governo. A dignidade do Estado impõe que este tipo de expedientes não deva ocorrer. Um político que não deve nem teme tem de ter a frieza para enfrentar todas as adversidades, com coragem, de forma limpa e transparente. Mesmo que a sua prisão possa estar ao virar da esquina. 

Mas é hoje muito óbvio que o cenário político brasileiro começa a adensar-se, como talvez nunca o tenha estado no passado, em torno de Dilma Rousseff, do PT e do próprio Lula - seja ele ministro ou não. Começa a ser evidente que está instalado um desespero nas hostes do governo, para cuja crise final já só falta o abandono por parte do PMDB, o maior partido brasileiro, que tudo indica estar apostado em vir a ser o beneficiário imediato desta "débacle" do PT. Michel Temer e a sua heteróclita formação parecem apenas medir a temperatura para promover a estocada final. O "day after", contudo, não é muito evidente.

O Brasil é uma grande democracia, com instituições que, no passado, já atravessaram testes importantes. A liberdade continua a ser a palavra de ordem da sociedade brasileira contemporânea. Como amigo do Brasil, só posso desejar que a estabilidade político-institucional seja rapidamente reencontrada. E que ressurjam, por "terras de Vera Cruz", a confiança e o otimismo, as duas grandes caraterísticas do povo brasileiro, que hoje parecem alheias ao seu quotidiano.

segunda-feira, março 14, 2016

Na morte do Senhor Contente


Ia escrever que conhecia mal Nicolau Breyner. Mas parei. Nicolau Breyner faz parte daquelas pessoas que todos conhecemos, praticamente, desde sempre. E que, por isso, nos vai fazer falta.

A primeira memória que dele tenho, como ator ao vivo, foi numa revista que vi no Sá da Bandeira, no Porto, creio que em 1967 ou 1968. Depois, com os anos, para além de outras presenças no Parque Mayer e noutros locais, a televisão tornou-o "one of us". Logo após o 25 de abril, vim a cruzar-me com ele nas "guerras" do período pós-Revolução, cujo entusiasmo partilhou por algum tempo, para depois se aproximar de áreas mais conservadoras. Sempre prevalecia nele o sorriso, a alegria, a graça espontânea. E, também, a delicadeza, a inteligência, a cultura, que, por vezes, não eram suficientemente relevadas, na frequente "ligeireza" de alguns papéis que lhe era dado representar. Recordo-me de como, em outras ocasiões, deu mostras de estar muito para além disso, por exemplo na personagem de natureza muito diferente que lhe coube fazer na telenovela "Vila Faia", em peças de teatro e no cinema. Nicolau Breyner era um excelente ator. Mas era também um criador cultural de grande mérito.

Descobrimos um dia que éramos vizinhos. Às vezes falávamos, por uns minutos, no meio da rua, com ele a passear o cão. Era público que tinha passado por problemas de saúde, mas não o sabia doente. 

Nicolau Breyner deu-nos muitas horas de alegria. Devemos-lhe agora um momento de tristeza.

O estado do Estado

O que vou dizer apoia-se na minha experiência. Aceito que outros possam ter uma perceção diferente. E poder estar equivocado.

Do que vi e ouvi ao longo de muitos anos, os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Nacional são os dois departamentos do Estado que, aquando da mudança de governos, apresentam aos novos titulares dossiês, sobre o "estado da arte" em todas as áreas da respetiva competência, com maior neutralidade e equilíbrio. No caso de muitos dos restantes ministérios, a excessiva partidarização ou a condução ideológica dos temas leva a que as novas tutelas olhem o que lhe é passado, nas transições, com menor confiança. Posso estar a ser injusto, mas é o que me chega.

Quando, há uns tempos, comentei isto com alguém ligado ao anterior governo, acrescentei o Ministério das Finanças a essa curta lista de departamentos. Era essa então a minha ideia. A reação dessa pessoa foi imediata:

- As Finanças?! Está completamente enganado! O Ministério das Finanças, tal como você e eu o conhecemos no passado, já desapareceu. Aquilo que nós víamos como um pilar do Estado, com sólidos e conhecedores departamentos, com diretores-gerais prestigiados e estáveis no tempo, acabou há muito. Agora, aquilo é enxameado ciclicamente por uma "rapaziada" trazida pelos ciclos políticos e, para o que realmente importa, no tocante a pareceres, vive de "outsourcing", pagando balúrdios a empresas e escritórios de advogados. 

Há pouco, ao ler os números astronómicos que foram pagos pelo Estado nas assessorias para os "brilhantes" contratos de "swaps", pareceu-me que a opinião daquele meu amigo ficou confortada.

domingo, março 13, 2016

Encontros imediatos

Combinei passar por lá para beber um copo, ao fim da tarde. Era a casa de um amigo, diretor da delegação de um banco português em Londres, onde eu estava colocado como diplomata. Ele tinha por lá três pessoas, vindas de Lisboa, de passagem, que queria apresentar-me. Foi há mais de vinte anos.

O meu amigo veio buscar-me à porta e, entrado na sala, de entre as três caras que por lá se encontravam, houve uma que me foi logo familiar. O nome dele dizia-me qualquer coisa e, sem a menor sombra de dúvida, conhecia-o pessoalmente. Ele também me reconheceu, de imediato, sabia quem eu era.

- Ah! Já se conheciam?!, constatou o meu amigo.

Ambos anuímos, sem a menor margem para dúvidas. Mas, perguntados de onde vinha esse conhecimento, começámos a hesitar. Eu alvitrei que talvez tivesse sido do serviço militar, mas não, ele não andara por lá. Tentámos o Porto, depois a faculdade, os países estrangeiros onde eu vivera, as tertúlias dos cafés, a política... Nada! Ele sugeriu alguns nomes de pessoas em casa de quem nos poderíamos ter encontrado, que nos podiam ter sido comuns numa qualquer ocasião. Mas nada coincidia.

A situação era algo constrangente. A ocasião, essa, ficou "raptada" por esse mistério. Os restantes presentes olhavam-nos, com um ar divertido. Nós fazíamos figura de parvos, ainda a lançar hipóteses para a conversa. Até ao final do encontro, não chegámos a nenhuma conclusão. 

Ao longo dos anos, a dúvida perseguiu-me: onde é que eu teria conhecido aquele tipo? Voltei a encontrá-lo mais tarde já em Portugal, já por diversas vezes, em situações várias. Até já nos tratamos por tu... 

Ontem, nem sei bem porquê, o nome dele veio à baila numa conversa. E, de repente, "fez-se-me luz". Lembrei-me que o havia conhecido num almoço, aí por 1976, num restaurante, com um amigo comum, montijense como ele. A memória tem destas coisas! 

sábado, março 12, 2016

Seguro e Rushdie

António José Seguro regressou ao espaço público, do qual se tinha afastado por vontade própria, depois de ter perdido as eleições internas no PS contra António Costa. Fê-lo na sua qualidade de académico, apresentando um livro que escreveu sobre o parlamento português. Muitos amigos estiveram por lá, a dar-lhe um abraço.

Infelizmente, razões imperiosas de última hora impediram-me de estar presente nessa sessão de lançamento da obra, que decorreu na sua e minha universidade - a Universidade Autónoma de Lisboa -, onde ambos lecionamos, no mesmo departamento de Relações Internacionais.

António José Seguro é um homem de bem e um amigo pessoal. Enquanto foi secretário-geral do PS, tive imenso gosto em com ele colaborar, em especial no aprofundamento de algumas questões europeias, no quadro da iniciativa "Novo Rumo", de cujo "núcleo duro" faziam também parte Caldeira Cabral, Maria João Rodrigues, Sampaio da Nóvoa e Lídia Sequeira.

Antes, eu estivera com ele num dos governos de António Guterres e acompanhara de perto a sua atividade no Parlamento Europeu. É uma figura seriíssima de cidadão e, por muitos erros que possa ter cometido enquanto líder socialista, ninguém o pode acusar de não ter sempre atuado de um modo empenhado, tentando fazer aquilo que considerou ser o melhor para o seu e nosso país.

Ao escrever isto, lembrei-me de como o conheci.

Um dia, em Londres, aí por 1991, recebi um telefonema de António José Seguro. Eu era "ministro conselheiro" na embaixada, isto é, o substituto legal do embaixador. Só conhecia então Seguro de nome, como líder da Juventude Socialista. Nunca antes tínhamos falado.

Disse-me que estava a organizar a vinda a Portugal de Salmon Rushdie, o escritor que, ao publicar o livro "Versos Satânicos", provocara a ira do fundamentalismo religioso iraniano, que sobre ele decretara uma "fatwa", uma decisão que estimulava os muçulmanos shiitas a ajudarem à sua liquidação. Vivia sob ameaças constantes de morte, sob proteção policial, viajando às vezes sob nome falso.

Seguro disse-me que a JS, creio, decidira convidar Rushdie a vir ao Porto, a uma iniciativa sobre liberdade de informação e criação, já não sei em que âmbito. O assunto estaria totalmente sob controlo em Portugal, em termos de segurança, com a PSP devidamente envolvida, cujo comandante, se necessário, poderia ser contactado sobre o assunto. Em Londres, no entanto, no balcão da TAP, as pessoas que ajudavam Rushdie tinham encontrado inesperadas dificuldades, pelo que o assunto estava num impasse. O que António José Seguro pretendia era que a embaixada arranjasse um interlocutor, na delegação da TAP, que pudesse fazer o tratamento personalizado da questão, a qual não era, visivelmente, "business as usual".

Assim fiz. Expliquei ao diretor da TAP em Londres o problema e pedi-lhe que alguém recebesse uma determinada pessoa de que Seguro me deu o nome. É assim que este tipo de questões, com maior delicadeza, sempre se tratam. Não meti nenhuma "cunha", nem pedi que fizessem nada de especial. Nem eu sabia, nem queria saber, se o que eventualmente os amigos de Rushdie pretendiam era possível ou não. A TAP que ajuizasse, depois da conversa. E esqueci o assunto. Pelos jornais, dias depois, vi que Rushdie tinha ido ao tal encontro no Porto.

Eis senão quanto, sou informado que tinha sido ordenado, contra mim, a pedido do gabinete do primeiro-ministro português, um inquérito por alegada "pressão" minha junto da TAP, num caso que tinha afetado a "segurança nacional". O tom era sério, o MNE, na sua subserviência empanicada face a S. Bento, passara de imediato a bola para o meu embaixador. O qual, claro, deu "dois berros" por escrito que acabaram por anular o assunto, depois de eu relatar aquela que era uma verdade bem simples e verificável. Ah! "For the record": o primeiro-ministro de então chamava-se Cavaco Silva.

sexta-feira, março 11, 2016

CPLP - A hora da verdade



Posso ser sincero? A CPLP tem duas décadas de existência e, há que dizê-lo com frontalidade e transparência, estes vinte anos não foram os mais entusiasmantes.

Houve países que investiram a sua vontade política na CPLP. Outros fizeram os mínimos, outros nem isso. A profunda desigualdade entre os Estados integrantes, as diferentes prioridades em que cada um coloca a organização no quadro das suas opções externas – tudo isso contribuiu para desenhar uma manta de retalhos, aqui ou ali nem sempre muito bem servida pelas personalidades a quem competiu desempenhar o cargo de Secretário-Executivo. Presumo que não seja politicamente correto dizer isto “alto”, mas eu, que estou de fora, não me coíbo em afirmá-lo.

A CPLP tem urgentemente de se repensar. Neste tempo de refluxo global da liberdade de circulação, ou a organização se consegue relançar como um espaço de cidadania coletiva, visivelmente útil para todos os seus cidadãos e Estados, ou o seu destino continuará a ser o estiolar na rotina declaratória das cimeiras. Por essa razão, criar tensões artificiais, para tentar relançar jogos de poder, é um gesto gratuito e até irresponsável. Nesse caso, talvez fosse melhor assumir, com coragem, o desafeto lusófobo ao projeto, em lugar de estimular polémicas que podem ter efeitos detrimentais nas relações bilaterais. Ou então, se esse é objetivo, assumi-lo abertamente.

Sei que o tema não é cómodo para muitos, mas também não vale a pena esconder que a adesão da Guiné Equatorial – forçada pela generalidade dos restantes membros, contra a vontade portuguesa – não configurou a “finest hour” de uma organização que se havia assumido, no seu início, com uma vocação ético-política, e que acabou por vergar-se à realpolitik. Goste-se ou não, essa adesão deixou feridas, descredibilizou profundamente a organização e permanece como um ferrete de que a CPLP se não libertou. O facto dos diferentes países ainda hoje olharem para esta realidade de forma contrastada é, em si mesmo, prova da fragilidade dos princípios comuns da organização.

Tenho-o dito e escrito, desde há muito: enquanto a CPLP não for assumida pelo Brasil como um instrumento essencial da sua política externa, a organização tem escassas possibilidades de evoluir e de afirmar-se à escala global. E nunca, até hoje, o foi. Em 2016, o Brasil assume a presidência rotativa da CPLP. Fá-lo-á passando a ter como embaixador junto da organização um diplomata que conheço muito bem, com grande qualidade e prestígio. Esta é uma oportunidade soberana para Brasília dar mostras de liderança e capacidade para relançar um projeto que, para ter “pernas para andar”, necessita, apenas e só, de vontade política. Porque acho que a ideia da CPLP permanece cada vez mais válida, confesso que ando à procura de razões para alimentar o meu otimismo.

quinta-feira, março 10, 2016

Grande Guerra


A mão visível


Para o retrato a óleo que quis deixar para a posteridade da galeria presidencial, Aníbal Cavaco Silva decidiu escolher, para além do texto constitucional, um clássico económico do liberalismo, "A Riqueza das Nações", de Adam Smith.

Um dos princípios que essa obra consagrou é o da "mão invisível", isto é, a defesa da ideia de que, num mercado livre, em que cada um atua na defesa dos seus interesses económicos próprios, a lógica do funcionamento do próprio mercado acaba por proporcionar vantagens para todos. Cada um a seu modo, esta é a "fé" básica dos liberais, com ou sem o "neo" atrás. Pelos vistos, o economista de quem tivemos uma década como chefe de Estado cessante também concorda.

Para a esmagadora maioria das pessoas, terá passado desapercebido que, no meio do discurso de posse de Marcelo Rebelo de Sousa, surgiu uma frase em que ele se afirma solidário com "aqueles que a 'mão invisível' apagou, subalternizou e marginalizou". Quase ninguém notou, mas estou seguro que o novo presidente não escreveria o que leu se não quisesse que se notasse essa sua diferença.

quarta-feira, março 09, 2016

A República está em festa?


O "responsável" é Cavaco Silva ou Marcelo Rebelo de Sousa? É que a República parece em festa. Só podemos esperar que a festa dure!

A menina do telefone


Tem vinte e tal anos, quase trinta. Está por ali, à noite, encostada às paredes ou aos carros, ou sentada no passeio. Às vezes ao frio e à chuva, outras sob o calor. Associo-a à noite, mas, agora reparo, também a encontro, por vezes, ao fim da tarde. Isto passa-se há, pelo menos, dois anos.

Fala ao telefone, sempre e muito. Às vezes parece ser só ela a falar. Entre nós, ao vê-la, dizemos: "Olha! Lá está a miss Telecom!". Deve morar ali perto e, provavelmente, a busca da privacidade obriga-a a procurar a rua para a conversa. Nunca estive muito atento ao que diz, embora ela fale alto. O tom é sempre grave, de discussão, como se houvesse um eterno problema com o interlocutor. Às vezes, há uns fiapos de conversa que, inevitavelmente, não consigo deixar de ouvir: "Eu já te tinha dito que não posso admitir..." ou "as coisas têm de ficar resolvidas, de uma vez por todas..." e coisas do género.

Fico triste com aquilo que parece ser a tristeza persistente daquela jovem mulher, que nunca esboça um esgar sorridente, que dá ares de carregar com ela, nas olheiras, o peso dos problemas do mundo. Será namoro? Deve ser. Mas que diabo tenho eu a ver com a vida dela? Nada, claro. Mas se ela faz parte da paisagem da minha rua, ao seu modo, também faz parte do cenário da minha vida.

Marcelo


Chega hoje a Belém. Esperemos que para bem. Não votei nele, mas desejo, com a maior sinceridade, que, nos próximos cinco anos, saiba interpretar o interesse do país, que conhece muito bem. Entra de mãos livres, com escassa dependência partidária, o que lhe confere uma maior responsabilidade. Por um tempo de graça cuja duração só dele depende, terá a possibilidade de ser o presidente da "acalmação", como noutros tempos se dizia.

Julgo que o conheço bem, mas quantos de nós não dirão o mesmo? É um homem inteligente, arguto, rápido, perspicaz. Por muito que o olhemos sempre no meio de muita gente, é um solitário. Confia imenso em si mesmo, porque a vida lhe tem dado razões para isso, porque a sorte também o tem bafejado, embora a sorte dê muito trabalho. Espera-se que, em Belém, saiba ouvir e seja capaz de refrear um estilo impulsivo que, por vezes, o fez cometer alguns erros. Erros que, no entanto, não foram suficientes para estragar o "percurso limpo" que, com maestria estratégica, o levou até à Presidência - verdade seja que também por falta de comparência de uns e por falta de jeito de outros.

Não vale a pena sublinhar o contraste que fará com a imagem de Cavaco Silva, que ele procurará tornar muito evidente, sem nunca o dizer. O seu modelo de presidente, também sem o dizer, é, na realidade, Mário Soares - no abraço, na afetividade, na simplicidade que, nem por ser ensaiada com coreografia de mestre, de uma forma tão natural que já faz parte de si mesmo, deixa de ter alguma coisa de genuíno. No fundo, estou certo de que, no dia que sair de Belém, também lhe não desagradaria ser comparado, em postura ética, a Jorge Sampaio. Mas também nunca o dirá. Será igual a si mesmo. Enfim, logo veremos!

terça-feira, março 08, 2016

Cavaco Silva


Aníbal Cavaco Silva sai amanhã da cena política. Em quase metade da minha vida como servidor público tive-o como ministro, primeiro-ministro e presidente da República.

Conheci-o ainda antes, como examinador, na minha prova oral de entrada para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 1975. Ele era então um jovem professor de economia, regressado de York, onde se tinha doutorado. Foi uma prova exigente, dura, mas correta. O tema - assuntos europeus - estava, à época, muito longe de ser a minha especialidade... Saí-me, creio, assim-assim. Tive a classificação que merecia.

Trocámos impressões sobre esse episódio, quatro anos mais tarde, na Noruega, era ele ministro das Finanças e eu diplomata na nossa embaixada. Notei o prazer que revelava por ter sido membro desse júri de admissão dos novos diplomatas. É, de facto, uma tarefa nobre e interessante. Também eu, anos mais tarde, fiz parte dos membros desse júri, ao lado de outro examinador que se chamava Marcelo Rebelo de Sousa.

Se, como ministro, Cavaco mantinha uma certa reserva, que sempre me pareceu fruto de alguma timidez e aversão a terrenos onde se não sentisse seguro, como primeiro-ministro fiquei com a sensação de que estimulou (ou aceitou, com agrado - a doutrina divide-se) a criação, à sua volta, de uma redoma de proteção, com uma hiper-segurança e uma corte reverente que o isolava. Creio que se sentia bem confortável assim, distante, parcimonioso na palavra, frio a um ponto de ser quase desagradável. É "um estilo", dizem alguns. Talvez, mas os estilos sujeitam-se a ser qualificados por quem se confronta com eles.

Por coincidência, fui o primeiro embaixador português a ser recebido por Cavaco Silva, enquanto presidente. Notei-o nesse dia mais solto, como se o regresso à política, noutro patamar, depois de uma década de travessia do deserto, lhe tivesse feito bem. Contudo, essa impressão não se confirmaria nos anos seguintes, onde o fui sentindo progressivamente crispado, como se o atravessasse uma desconfiança permanente, o receio de um passo em falso, um cuidado extremo em funcionar "by the book".

Na última vez que nos cruzámos, em 2013, estávamos ambos de fraque, nos dourados de Queluz. Eu,  já reformado da função pública portuguesa, representava uma entidade internacional, o Conselho da Europa, na cerimónia anual de cumprimentos ao chefe do Estado pelo corpo diplomático estrangeiros acreditado em Lisboa. Era então diretor executivo do Centro Norte-Sul, curiosamente uma organização a que Cavaco Silva dedicou sempre grande interesse. Não tive tempo para lhe lembrar que, em 1989, fora eu, enquanto diplomata, quem lhe escrevera o discurso que fez na inauguração do Centro.

Nunca mais encontrei pessoalmente Aníbal Cavaco Silva. Neste que é o último dia da sua função presidencial, acho que o mínimo de elegância aconselha a não falar demasiado do lado político de Cavaco Silva, particularmente por parte de quem, desde o primeiro dia que com ele se encontrou, nunca teve um mínimo de sintonia com a sua forma de estar na política e no serviço público. Não duvido, longe disso, que Cavaco, como ontem disse, tenha sempre agido na convição de que o fazia "de acordo com o superior interesse nacional". Porém, se um político a quem o país deu quatro maiorias absolutas acaba com a popularidade mais baixa do que qualquer outro presidente teve no final do seu mandato, das duas uma: ou é ele que está enganado ou foi o eleitorado que se equivocou. A História irá escolher.

A esquerda da esquerda

A propósito do post que ontem aqui publiquei sobre o PCP, ocorreu-me que parte da tensão que ainda hoje se vive entre aquele partido e o Bloco de Esquerda encontra a sua justificação no conflito ideológico que, desde o início dos anos 60, se instalou na "esquerda da esquerda" portuguesa. E que, na realidade, nunca se apagou por completo, até aos dias de hoje.

Não me proponho revisitar aqui a história da multiplicidade de tendências que surgiram, a partir de 1964, na extrema-esquerda portuguesa, numa cascata de organizações que tinham como ponto comum a diabolização do PCP e o apelo à "reconstrução" do "verdadeiro partido comunista". Mas vale a pena lembrar que esse longo e complexo tecido de organizações acaba, em grande parte, por convergir numa organização frentista que, logo em 1976, consegue eleger um deputado para a Assembleia Constituinte, a UDP - União Democrática Popular. A UDP, ou o que dela restava, acaba por ter um papel fundamental na criação do Bloco de Esquerda, em 2000.

Mas não esteve sozinha. Outro dos componentes do Bloco foram os trotskistas, nomeadamente os que eram oriundos do Partido Socialista Revolucionário.

Há um profunda ironia em ver juntas no mesmo partido pessoas que emergem de correntes estalinistas e trotsquistas, as duas alas mais ferozmente antagónicas do movimento comunista internacional. Não sei se, pelo mundo, um facto como estes é comum.

O Bloco tem ainda uma terceira componente, constituída por figuras que, entretanto, se tinham afastado do PCP mas não ingressaram no PS, parte dos quais tinham criado a Política XXI.

A essa amálgama vêm ainda a somar-se (poucos) nomes que haviam estado no MRPP (a única das organizações maoístas, embora também ferozmente anti-PCP, que não nasceu da divisão de 1962) e outros militantes autónomos, em especial de meios católicos radicais e promotores de causas "fraturantes".

O Bloco parece-me ser isso - mas admito que outros tenham uma diferente leitura da que faço. E devo dizer que, acompanhando com alguma atenção, desde há décadas, a "cissiparidade" endémica da extrema esquerda portuguesa, fico surpreendido com a capacidade de união que uma formação com tanta diversidade tem conseguido manter ao longo destes anos.

O PCP manteve sempre à distância, sem a menor exceção, todas as organizações situadas à sua esquerda, dos maoístas aos trostskistas e anarquistas, embora dando sempre mais atenção crítica aos primeiros. Antes do 25 de abril, Álvaro Cunhal escreveu mesmo um pequeno livro onde fazia a denúncia desses movimentos, a que deu um título que é auto-explicativo: "O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista". Já depois do 25 de abril, um militante comunista, José Manuel Jara, publicou "A farsa dos pseudo-radicais em Portugal" (1974) e "O Maoísmo em Portugal" (1975), onde pretendeu prolongar e desenvolver a denúncia de Álvaro Cunhal.

Nada indica que pontes entre o PCP e o Bloco de Esquerda possam vir a ser construídas, não obstante a vizinhança de assentos no plenário de S. Bento. As velhas querelas mantêm-se e, em certa medida, ambas as formações têm um espaço de crescimento potencial que é comum e, por isso mesmo, continuam em natural disputa entre si.

António Costa não os conseguiu sentar à mesma mesa a assinar o acordo que sustenta o seu governo. Mas, "chapeau!", tem sido suficientemente hábil para os manter a bordo da "geringonça", que tem funcionado melhor do que muitos supunham. A começar por mim.

segunda-feira, março 07, 2016

95 anos


É uma bela idade para um partido, aquela que o PCP ontem comemorou.

Dos partidos existentes, e por data de criação, o PS, que surge em 1973 (52 anos depois!) pode ser considerado o segundo mais antigo. PSD (então PPD) e CDS-PP (então CDS) foram criados já em 1974, depois da Revolução.

Nascido em 1921, por transformação em partido de uma organização de raiz anarquista surgida dois anos antes, no auge do entusiasmo gerado no movimento operário pela Revolução russa, o PCP foi uma estrutura sempre muito débil até ao final da I República. Só o declínio do movimento anarquista, no início dos anos 30, muito atingido pela severa repressão da ditadura militar, que paralelamente exilou o "reviralhismo" e não teve dificuldade em controlar a esquerda intelectual de matriz socializante, permitiu ao PCP vir a ter um papel mais relevante na luta operária que então ainda se conseguia afirmar. Desde o seu início, o Estado Novo iria ser impiedoso para com os comunistas, tal como o fora com os anarquistas, conseguindo mesmo, por algum tempo, quase anular a sua atividade. Só a partir da década de 40 é que o PCP começou a ter maior expressão na luta oposicionista, conseguindo, muito graças aos seus setores intelectuais, estabelecer pontes com o republicanismo tradicional e com as correntes socialistas, se bem que estas fossem muito pouco representativas. Internamente, o partido - cuja fidelidade a Moscovo, sem limites ou reticências, o tornou mimético e acrítico face às mudanças que foram ocorrendo na URSS - sofreu entretanto várias convulsões na sua liderança e mesmo alguns "desvios" no seu percurso. Contudo, desde os anos 40, o PCP nunca abdicou de privilegiar o "frentismo" como forma de ação política, onde sempre procurou fazer prevalecer a sua linha estratégica, que se revelou nem sempre conforme com as dos seus vários aliados. Em especial desde o final dos anos 50, bem cientes da sua força objetiva relativa, os comunistas procuraram assegurar cada vez mais uma liderança firme no seio da oposição, prestigiados como estavam pela sua postura de grande coragem e sacrifício em face da repressão do regime, bem como por uma atitude de forte coerência na luta anti-colonial. Porém, logo de seguida, com o início da década de 60, e como consequência direta do cisma sino-soviético, o PCP ver-se-ia fortemente contestado à sua esquerda, o que lhe criou a necessidade de dar resposta política a uma multifacetada crítica ideológica, que teve especial expressão nos meios académicos. O surgimento de uma forte agitação no movimento católico e o surto de crescimento do movimento sindical trouxeram, entretanto, terrenos novos e férteis à ação do PCP, que, até ao 25 de abril, revelou sempre algum interesse em manter um diálogo crítico com a corrente socialista, apenas com um afastamento acentuado, mas pontual, nas "eleições" de 1969. Porém, de forma incontestável, o PCP iria chegar à Revolução como a força política mais relevante no seio da oposição à ditadura.

Depois, a história é mais conhecida. Parabéns ao PCP, agora reconduzido a uma formação política com responsabilidades de sustentação do poder.

domingo, março 06, 2016

Margem esquerda


Durante a tarde de ontem, numa associação popular do Barreiro, debati, durante mais de duas horas, com o deputado Porfírio Silva e uma interventiva audiência, essa questão essencial que são as alternativas possíveis em matéria de política económico-financeira, numa Europa em evidente crise e no seio da qual a gestão da posição de um país como Portugal é extraordinariamente difícil. Dou-me conta de que, em pouco tempo, esta é a terceira vez que a discussão sobre a Europa me leva "à outra banda", como dizem os lisboetas.

Não sei se o debate foi conclusivo, não posso avaliar se as pessoas saíram mais esclarecidas ou se as nossas dúvidas não acabaram por tornar ainda mais complexa a sua leitura sobre o estado do processo integrador do continente. Tenho sempre uma grande dificuldade em avaliar o saldo final de interesse de quem nos escuta. 

Mas quero dizer, com a maior sinceridade, que saí daquela sessão "com a alma lavada", por observar um grande número de jovens, misturados com outros mais velhos mas que estavam longe de ser a maioria, atentos e a discutir com grande abertura, preocupados com a Europa e a interrogar-se sobre a melhor atitude para a defesa dos interesses de Portugal, avançando com as perguntas certas, sem tremendismos, mas também sem líricas ingenuidades. 

É verdade que a organização pertencia à Juventude Socialista do Barreiro, mas foi reconfortante encontrar também por ali jovens do CDS-PP e do Bloco de Esquerda, visivelmente interessados em temáticas das quais depende o nosso futuro como país. 

Cheguei ao Barreiro pela avenida Alfredo da Silva e saí pela avenida Bento Gonçalves. Isto parece-me que diz alguma coisa sobre o equilíbrio salutar que hoje se vive naquela terra, pela qual me habituei a ter um grande respeito histórico, porque por ali se cruzam memórias muito profundas da luta pela construção da nossa democracia.

sábado, março 05, 2016

Uma censura de Ferro


No âmbito de um trabalho que estou a fazer a convite do "News Museum", que no próximo mês vai abrir em Sintra, consultei nos últimos dias alguma bibliografia sobre António Ferro, o principal artífice da propaganda do salazarismo. Ferro é uma figura controversa, que junta facetas muito contrastantes. Não deixa, no entanto, de ser uma personalidade muito curiosa e quase fascinante, merecedora de destaque e de atento estudo, pelo seu perfil cultural e pelo papel político que desempenhou.

Há meses, insurgi-me aqui sobre uma biografia de António Ferro, da autoria de Orlando Raimundo, que critiquei, porque entendi politicamente preconceituosa. No entanto, não deixei de ler o livro e de dele extrair alguns ensinamentos. Goste-se ou não do trabalho, é uma contribuição incontornável para o tratamento futuro da figura de Ferro.

Ontem, adquiri uma outra obra, muito recente (fevereiro de 2016), intitulada "António Ferro - 120 anos", que traz a atas de um colóquio organizado pela Fundação António Quadros (filho de Ferro e dessa figura também muito interessante que foi a escritora Fernanda de Castro). No final do volume, os organizadores (pelo nome, familiares de Ferro) inserem uma "bibliografia passiva", com 24 obras sobre António Ferro, que eu pensei quase exaustiva, à luz daquilo que eu conheço.

Tentei então descobrir nessa lista a obra que eu próprio tinha criticado. Mas o livro de Orlando Raimundo não figura na bibliografia. Porquê? Seguramente porque a deontologia científica da Fundação António Quadros não chega ao ponto de poder conviver com o contraditório e cede afetivamente à parcialidade. É pena. Ao assim proceder, a Fundação adota os métodos censórios do regime ditatorial de que António Ferro foi tão fiel servidor. Mas não serve a História, que poderia ajudar a consagrar o seu antepassado. É que a História ouve todos os lados, mesmo os que não são simpáticos.

sexta-feira, março 04, 2016

Lula


Ao contrário de muitos dos meus amigos brasileiros e de alguns portugueses, fico triste com a detenção do antigo presidente brasileiro Lula da Silva. Seria muito mais fácil não o dizer no dia de hoje, mas digo-o, sem hesitações.

Porquê? Por três razões.

Porque durante os quatro anos em que fui embaixador português no Brasil, só recebi do presidente Lula manifestações de interesse e carinho por Portugal, que eu ali representei. Porque, depois da minha saída do Brasil, continuou a ter para comigo gestos de simpatia e atitudes reveladoras de amizade e atenção. E isso não esqueço. Estando ele na cadeia ou fora dela.

Porque faço uma avaliação globalmente positiva dos seus mandatos, do salto que fez dar à sociedade brasileira, do sopro de esperança que trouxe a pobres e desfavorecidos, da fome que tirou a milhões dos seus concidadãos e do impulso extraordinário que deu à imagem e ao papel do Brasil pelo mundo.

Mas também porque me preocupa a radicalização que a situação política interna do Brasil possa vir a sofrer, por virtude desta ação da justiça. Há uma parte importante do Brasil que tenho a certeza de que vai interpretar esta detenção como uma espécie de vingança histórico-política, para evitar a sua recandidatura em 2018.

Se a humilhação por que Lula hoje passou tiver sido gratuita, espero que alguém seja por ela fortemente responsabilizado. Não se humilha um antigo chefe de Estado sem razões muito sólidas e incontroversas.

Mas que fique também bem claro: se se vier a confirmar que Lula da Silva é indiscutivelmente culpado dos crimes que lhe venham a ser imputados, desejo sinceramente que a justiça brasileira o condene e o faça pagar por isso, à medida exata das suas responsabilidades.

Digo aquilo que já disse noutro caso: acho sempre especialmente grave se se vier a provar que uma pessoa traiu a confiança democrática que o voto popular lhe confiou, para disso tirar vantagens materiais de natureza pessoal. Nesse caso, e sob prova concludente, deverá ser punida de modo exemplar. A justiça democrática por que Lula sempre disse lutar é isso mesmo.

Notícias da aldeia

Nas aldeias, os cartazes das festas de verão, em honra do santo padroeiro, costumam apodrecer de velhos, chegando até à primavera. O país pa...